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O desembarque tardio do PMDB e o triunfo do achaque

Yahoo – De uma coisa não podemos reclamar desses dois últimos anos de cotoveladas, vazamentos seletivos, tensões à flor da pele, traições desnudadas e defesa desavergonhada do que antes era indefensável: foi um curso intensivo de política (sem teoria) aplicada.

Mal comparado, é mais ou menos como quando nossa cidade deixa de estranhar o comércio e consumo de entorpecentes, prostituição e contrabando em plena luz do dia. Sempre soubemos que existiam, mas quando deixam o submundo e passam a desfilar pelos nossos olhos, o cínico sono dos justos ganha outro nome.

Como tudo começou?

Em 2014, era missão do futuro presidente promover reparos num vazamento do qual muitos dos agora indignados se beneficiaram até a última gota enquanto jorrava. O plano de governo de qualquer candidato era um documento à espera de uma canetada.

Havia um candidato favorito do chamado mercado para implantar o alardeado ajuste, mas ele não se elegeu. Dilma Rousseff, em seu segundo mandato, até tentou vestir o figurino, mas este não lhe coube. Indecisa entre os compromissos com sua base social e a ansiedade dos investidores, a presidenta viu sua popularidade derreter à medida que o custo de seu apoio no Congresso observava uma escalada inflacionária.

Michel Temer, que não é bobo nem nada, correu para dizer que com ele e seus comparsas não haveria crise: fariam sem constrangimento ou culpa católica o que a presidenta reeleita não parecia capaz ou suficientemente disposta a fazer. Como escreveu Mauricio Puls, na Folha de S.Paulo, a plataforma eleitoral do vice-presidente tem no documento “Uma ponte para o futuro” o compromisso de eliminar vinculações constitucionais para a saúde e educação, flexibilizar direitos trabalhistas, aumentar a idade mínima de aposentadoria, eliminar a regra de reajuste real do salário mínimo. Bandeiras que, grifo meu, levantadas por um governo dito popular, teriam menos chance de prosperar. Pelo contrário: se dependesse de seus apoiadores mais radicais, este seria o único governo com chances reais de apoiar medidas como taxação de grandes fortunas, fim das doações empresariais e – toc toc toc – a regulação da mídia.

O governo Dilma se tornou, então, um inquilino indesejado de uma casa que imaginou ser sua por direito natural. Teria chances de obter uma saída honrosa ao fim do mandato se não fosse a Lava Jato, o pretexto ideal para apear do poder um governo já não só associado à incompetência, mas à corrupção.

Lula, em seu tempo áureo, dizia que, diferentemente de outros governantes, não tinha o direito de errar. Mas, não tão diferentemente de outros governantes ou partidos, errou. O PT– frase de um correligionário – acreditou que poderia usar e se lambuzar das mesmas regras de seus oponentes e receber o mesmo tratamento. Errou rude.

Na Java Jato, não houve santo que não foi flagrado lustrando o próprio chifre. O rabo chegava ao governo Sarney – no caso da Odebrecht, ao governo Costa e Silva – mas em política não se constrói uma convulsão social usando argumentos jurídicos. Ela se adapta aos homens e suas circunstâncias, e estas ordenaram um corre-corre pela própria sobrevivência ao gritos de pega ladrão – inclusive entre ladrões.

Para sobreviver, não é preciso saber nadar nem ganhar eleição. É preciso saber saltar do barco. O cálculo do PMDB até aqui é claro: há mais a ganhar, e menos a perder, se as circunstâncias criarem seu próprio barco.

O governo, vendo a debandada, passou a oferecer não só o convés, mas o salão nobre. Sem argumentos diante da inundação, passou a lançar os hospedeiros ao mar – na tentativa de oferecer as acomodações a outros marujos. Primeiro, por atacado. Depois, homem a homem. Destacou, para isso, seu maior patrimônio – o ex-presidente Lula, cujo prestígio, hoje, é uma foto borrada pelo tempo. Periga colocar esta foto a venda para pedir qualquer migalha no chapéu. Exemplo disso é que os 87% de aprovação ao fim de seu governo não comovem o hoje candidato a futuro presidente que não foi aprovado por ninguém.

Detonada a debandada, já há, entre os demais partidos, quem admita lançar a bancada ao escrutínio da fúria popular apenas sob garantia de vitória governista. Esta se tornou cada vez menos provável depois que seu ex-líder no Senado, abandonado à própria sorte, decidiu botar fogo no velho barco.

Lula, então, passou a ser oficialmente investigado – e oficialmente passou a correr risco de ser preso, e não apenas conduzido coercitivamente para prestar esclarecimento à polícia.

Dilma não teve opções a não servir oferecer abrigo – podia ter, como jura, a melhor das intenções, mas já não podia convencer as ruas de que o governo acabava de se transformar numa trincheira, sensação agravada pela divulgação de conversas ao telefone criminosamente espalhadas e retiradas do contexto.

A fase Tarantino de armas apontadas uns para os outros sob o medo congelante da carnificina já passou. Com tiros para todos os lados, os corpos são atirados ao mar enquanto os responsáveis cantam promessas de trabalho e espaço amplo a quem aceitar as sobras de um dos lados (ao fim do bombardeio, serão terrenos minados entre ruinas, ganhe quem ganhar, mas isso é outra história). Em meio à epidemia de zika, dengue e afins e às vésperas (apenas) de uma Olimpíada, a Funasa, posto-chave do Ministério da Saúde, e o Ministério do Esporte são hoje órgãos acéfalos. Sob bombardeiro, o governo pode oferecer tudo, menos estabilidade aos postulantes ao cargo. A oposição, ciente da metástase, pode oferecer aspirinas. E pensar que teve ministro da Educação demitido por comparar os estertores da base aliada de “achacadores”.

“Eles [deputados] querem é que o governo esteja frágil porque é a forma de eles achacarem mais, tomarem mais, tirarem mais dele, aprovarem as emendas impositivas”, disse Cid Gomes há cerca de um ano. Pouco depois, reiterou as críticas em plenário, Eduardo Cunha à frente, e foi demitido. O governo sinalizava ali a sua opção de risco.

Em 2011, Dilma virou meme ao responder Dilma a uma jornalista da TV Globo quando questionada sobre pressões dos partidos de sustentação do governo:  “Você me dá um exemplo do ‘dá cá’ que eu te explico o ‘toma lá’”.

Caso a jornalista tenha tido tempo para reunir exemplos a uma futura tréplica, a petista poderá dizer tudo – que o processo de impeachment tem um vício de origem porque foi aberto por um desafeto do governo acusado formalmente de corrupção; que este deputado está disposto a dar aos adversários do governo o que eles querem – a cabeça da presidenta – para salvar a própria cabeça; que os interessados no colapso, da linha de sucessores aos opositores de alta plumagem, têm contra eles uma ficha corrida de fazer inveja a Al Capone; que os antecessores lançaram os mesmos expedientes; que os grupos econômicos só se engajaram no bombardeio quando os negócios foram ameaçados pela paralisia ou pelo aumento de impostos, e não pela indignação com a corrupção ou com a continuidade de um projeto que um dia garantiu seu lucro; que tem delegado e promotor engajado na luta após pedir votos para seu opositor; que tem juiz de primeira instância com o timing político de um bom marqueteiro de campanha; que tem ministro do Supremo que não se constrange em andar de mãos dadas com opositores; que tem emissora que se esqueceu do trauma de 89 e fez do impeachment uma questão de vida e morte; que tem revista semanal que se esqueceu de fazer jornalismo – a arte de mostrar todos os lados – para fazer novela das nove.

Dilma, na tréplica, pode citar tudo contra ela a seu favor. Só não pode se queixar da falta de exemplos de “dá cá” que seu governo e aliados passaram a produzir a granel e comercializar em plena luz do dia. A essa altura, não se sabe o que é mais fajuta: se a lealdade da base aliada ou o esforço do governo em preservá-la. Mas, enquanto durou, pudemos aprender muito com ela.

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